terça-feira, março 14, 2006

Quando Fores Velha

Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e suas sombras profundas;

Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;

Inclinada sobre o fogo incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o amor te abandonou
E em largos passos galgou as montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.


W. B. Yeats

domingo, março 05, 2006

O Valor do Tempo


Tirou da prateleira do móvel a ampulheta que os filhos lhe tinham oferecido de presente no seu quadragésimo aniversário. Encaminhou-se para a mesinha da sala, colocou-a bem à sua frente, no sofá onde se sentou, e sorriu, ao pensar na ironia.
Cinco minutos. Era o tempo preciso que os pequenos grãos de areia levavam a passar, pelo estreito orifício, entre os reservatórios da ampulheta.
Deu-lhe mais uma volta e ficou a olhar para cada grão de areia que escapava, inevitavelmente, da parte superior para a inferior do dispositivo, assinalando, com exactidão, a fracção de tempo que lhe cabia.
Voltou-a novamente. Era compulsivo.
Reiniciou o processo, uma e outra vez, sem conseguir afastar os olhos, por um instante, do mecanismo que lhe prendera a atenção e para o que representava: o fluir do tempo.
Aflorou-lhe à memória uma frase que ouvira muitos anos atrás, da boca de uma personagem feminina de meia-idade, numa peça de teatro a que tinha ido assistir com uns colegas da Faculdade. Curioso como lhe surgia agora, completamente fora do contexto da altura, para tão bem se aplicar ao seu presente: "quando se chega à minha idade, os dias custam a passar, e os anos passam a correr."
O sol, através dos vidros, incidia sobre a ampulheta e conferia um brilho quase mágico à areia que, no seu ritmo inalterável, ia escapando pelo orifício.
Com gestos repetitivos, como uma criança autista fascinada com o seu brinquedo preferido, virava e voltava a virar a ampulheta, a contar o tempo, sem dar pelo tempo passar...
até que o sol deixou de iluminar a sala e o crepúsculo se apoderou de todo o espaço.
Lídia não conseguia parar de brincar com o seu jogo novo.
De rompante, qual furacão, Miguel entrou na sala, atirou com o saco de desporto para um canto, acendeu a luz e disse "Olá Mãe. Está às escuras? Estou cá com uma fome. Fico sempre assim depois do ténis. Tenho que me despachar. Depois de jantar ainda tenho que ir buscar a Susana. Hoje é a ante-estreia da longa-metragem do Marco. Quem diria, hem? Aquele puto ainda vem a ser um realizador de mão-cheia. Vou tomar um duche num instante, enquanto a mãe me põe a comida na mesa. É verdade, tive exame de biologia. Correu-me bem. O João e a Teresa também vão. Encontramo-nos à entrada do CCB. Bom, não tenho tempo a perder. Isto é uma correria louca. Sinceramente, não sei como há gente que consegue ter tempo para tudo".
Lídia entreabriu os lábios para falar. Demasiado tarde. Miguel já tinha fechado a porta do quarto e a água a correr no chuveiro era o único som passível de ser ouvido.

sábado, março 04, 2006

Primeiro Amor

Tarde para tocar-te, Amor?
Este instante sabíamos -
Amor Marinho, Amor Terreno,
Amor Celeste também.


(Emily Dickinson)


Lembro, com infinita ternura
o tempo em que, sob os pinheiros,
nos amávamos com doçura:
afagos, que foram os primeiros,
no leito macio da caruma,
ao som do vaivém das marés.

Doutras vezes, junto ao mar,
sobre a areia pelo sol aquecida,
fundíamos os lábios, ao luar.
Serena corria a vida...
como a da onda, desfeita em espuma,
cúmplice e enamorada, a nossos pés.

sexta-feira, março 03, 2006

Mãos vazias


Hoje roubei as rosas todas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.

Eugénio de Andrade



Nada tenho para te dar, Amor.
Sou só eu, assim, despida:
despojada de presentes, de enfeites,
de sortilégios...
a querer a tua luz;
a querer a tua água.

Quero-te com tanta força
que chegam a doer-me,
cravados bem fundo, nas mãos,
os espinhos
das rosas que não te trago.